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domingo, 2 de novembro de 2014

Encontro com a Senhora Morte


Eu fui uma criança muito medrosa. Eu me lembro que o Dia de Finados me fazia sentir tão triste. A Morte causava-me calafrios e os mistérios que a envolviam mexiam muito com a minha imaginação infantil de forma que me fazia criar seres sobrenaturais, como, fantasmas, vampiros, zumbis, lobisomens, cabeça de cuia e outras criaturas medonhas que eu imaginava.

As pessoas costumam comparar a morte como um indivíduo com uma capa preta e uma foice para ceifar a vida das pessoas marcadas para morrer. Eu não acho que essa seja a imagem da morte. Para mim, ela é uma sábia senhora, sentada em sua cadeira de balanço, esperando a hora certa de conduzir as almas a um lugar desconhecido, porém de destino certo.

O Senhor Deus Onipotente ordena a hora que a discreta senhora deve conduzir os escolhidos ao local que Ele determinar. Ela cumpre seus desígnios, pois sabe quão nobres são os planos do Senhor. A senhora morte é dotada de muita sabedoria, Deus a dotou de grande astúcia, ela sabe que todas os seres vivos tem uma hora certa de deixarem sua vida terrena. Algumas vezes, ela não precisa ir ao encontro dos que iram deixar sua vida terrena. Certos humanos a procuram sem serem chamados e a abraçam. Em seu seio, os suicidas sufocam o sopro de vida  que lhes resta e escorrem dos braços da Morte rumo a um abismo e se jogam, deixam-na com os olhos rasos de lágrimas e os braços impotentes, sem poder mostrar o lugar, normalmente, destinado às almas de seu Mestre.

Certo dia, olhei a Morte nos olhos. Bati à porta dela, ela não quis abrir. Lembrei-me de que os suicidas arrombam a casa da Morte. Eu ia tentar agir como esses desesperados, mas ouvi uma voz suave que parecia vir de todos os lados e de lugar nenhum, ao mesmo tempo, a voz também era cortante. Era como se de repente meu coração estivesse enterrado no gelo e uma brisa de calor soprasse e aos poucos aquece-o. Meus ouvidos distinguiram nitidamente estas palavras:

- Não chegou sua hora, nem tente ir ao encontro da Morte, pois ela não vai recebê-la, dei ordens aos meus anjos para te guardarem aonde fores, és minha, tens o Nome escrito no livro da Vida.

Fiquei sem ação, meu coração contorcia-se como se os meus batimentos cardíacos fossem tomados por um ritmo de um coração que não me pertencia, não conseguia pronunciar nenhum som audível, cai de joelhos de cabeças baixa, pois me sentia exausta, como se carregasse um peso maior que o do meu corpo. Meus sentidos ficaram absolvidos por uma luz tão intensa que me paralisou por inteiro. Após alguns instantes, eu pude discernir o que a voz dizia, mas seu significado continuava obscuro e produziu na minha alma uma mistura de alegria e de dor. Pressentia grandes responsabilidades e um caminho de saborosos dissabores. Uma força arrebatou-me do meu torpor e eu pude pronunciar apenas essas palavras:

- De quem é essa voz? Quem é você?

A Resposta veio como um raio que incendiou todo meu ser: 

-Sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim.

Ao escutar tais palavras, imediatamente, deitei por terra com os braços estendidos em forma de cruz, e conseguia dizer apenas:

- Senhor, eu sou tão frágil, por que me escolhestes? Eu nada sou Senhor para desejar que eu fique perto de Ti.

Em seguida, chorei convulsivamente e vi que se aproximava de mim uma bela mulher de quase cinquenta anos, mas de uma beleza capaz de ofuscar as mais lindas jovens do mundo. Ela estava coberta por um manto azul e aproximou-se falando com mel nos olhos:

-Coragem, flor do campo, não estás sozinha!

Levantei os olhos e a imagem foi desaparecendo aos poucos de meus olhos molhados pelas lágrimas. Mas, continuava a sentir a presença e o perfume suave da mulher a envolver meus sentidos e pude distinguir dentre tantas sensações e sons um barulho como o rufar de asas atrás de mim e, novamente, escutei a voz da bela mulher a dizer-me:

-Eu sou a Mãe do Filho de Deus e de todos os homens, não tenhas medo de fazer o que Jesus e Meu Deus pedirem.

Essas palavras foram pronunciadas por uma das vozes mais bonitas que tinha escutado na vida. Elas trouxeram-me uma paz que me fez restabelecer a calma e manter minha atenção às instruções que Deus ia me transmitindo com Sua voz de Trovão:

- Você precisa conversar com a Morte para entender o seu sentido.

Apesar de ficar confusa com tais palavras, eu não senti medo algum, pois a cada palavra que saía dos lábios de Deus, eu podia sentir uma força que me arrastava para seguir o que Ele havia me ordenado. Fui chamar então a morte para conversar:

-Boa Senhora, eu preciso fazer-lhe algumas perguntas.

Esperei por alguns instantes a resposta, mas nenhum som ouvi. Percebi o receio da Morte e insisti:

- Não entrarei em sua morada, apenas, preciso conversar do lado de fora de sua casa, eu fui enviada pelo Nosso Senhor.

A morte entreabriu a porta e pude distinguir um perfil de Senhora, seios fatos e olhos astutos a me examinar com curiosidade:

- O que você deseja que eu diga?

Respondi timidamente:

- Quem és? 

Notei um brilho reluzir na escuridão dos olhos da Senhora que desarmou sua desconfiança e começou a me dizer:

- O Anjo rebelde do Senhor plantou no coração dos homens o Mal, o desejo de Poder, de conhecer mais do que o Criador, por isso, eu fui escolhida para morar nessa casa à espera de levar determinadas almas para um lugar desconhecido, mas muitas vezes os próprios seres humanos procuram-me por eles mesmos...

- Assim como eu?

- Sim!

-O que acontece com eles?

-Nem eu sei, minha querida.

-Você não tem pena dessas pessoas que você vai buscar? A Senhora destrói seus planos, retira-as das pessoas que ama e espalha a tristeza entre as pessoas...

-Eu apenas cumpro ordens.

-Você sabe o motivo do Senhor não acabar com a condenação das pessoas?

- Ele já acabou com a condenação, menina, Deus fez-se homem, sofreu morte de cruz para mostrar aos seres humanos que é possível suportar o sofrimento e se sacrificar pelo bem dos outros e por amor a Deus.

-Que tipo de amor é esse que causa dor?

-O amor sem dor não faz sentido, minha querida. Cristo precisou morrer para ressuscitar para uma vida nova e com isso permitir que todos os homens também a tenham.

- Que amor tão grande foi esse, Morte, que se deixou ferir para curar as feridas de tantas pessoas que muitas vezes desprezam Deus?

- É um amor imenso, menina, você nem pode imaginar. Eu nunca fui buscar homem tão feliz, mesmo muito tendo sofrido tanto. Jesus Cristo irradiava de sua carne quase sem vida uma imensa paz e quando seus olhos cruzaram os meus, eu pude ver sorrir nele uma Esperança que nunca tinha visto em outro rosto. 

-Isso significa que é necessário vê-la para encontrar a verdadeira felicidade?

-Não chega a tanto. O Senhor disse-me que a morte apenas é necessária para que renasçam outros sentimentos e a matéria corruptível revista-se da perfeiçãodivina, essas são as palavras do Mestre.

- Agora, entendo minha boa Senhora, és muito sábia.

-Não fale assim, menina, não esqueça que iremos nos encontrar de novo e da próxima vez nosso encontro pode não ser tão agradável...Eu tenho os meus dissabores... Não esqueça que você precisa se preparar para esse dia como o Senhor Jesus Cristo estava preparado.

Nesse momento, senti um arrepio que logo se desfez em um largo sorriso ao me lembrar das palavras de amor que Deus me havia dirigido. A Morte olhou-me desconfiada e disse:

-Precisa ir embora. Isso é tudo o que me é permitido contar.

Respondi, mecanicamente, as palavras que pronunciei saíram confusas como meus pensamentos:

-É tarde para a Morte... acho que tem muito o que fazer... espero que não.

A Boa Senhora sorriu do meu desconcerto.

- Vá em paz, menina, e não esqueça as palavra do Mestre Jesus - Vigiai e orai para não cair em tentação, pois o Espírito está pronto para resistir, mas a carne é fraca- Sua família deve estar ansiosa para vê-la bem.

De repente, senti uma força me levantar rumo ao céu, eu podia sentir o barulho das asas de um ser que me sussurrava:

- Sou o Anjo Rafael, o anjo encarregado de curar os humanos, agora, você precisa acordar e ter coragem para fazer o que lhe foi pedido.

Por um momento meus olhos foram envolvidos em uma escuridão absoluta e todo meu ser estava envolvido no nada. Não sei em quanto tempo tudo isso aconteceu, eu sei apenas que subitamente pude abrir meus olhos e ver o branco das paredes. Estava deitada numa cama que me parecia ser de um hospital. Olhei para o meu braço e vi que estava com uma agulha em minhas veias, levantei a cabeça com certa dificuldade e vi que o soro já estava no final e senti olhares carinhosos a me encher de carinho. Ao conversar com meus familiares e com as pessoas que estavam cuidando da minha saúde, eu fui tendo consciência de que tinha escapado por pouco de uma tentativa de suicídio. Por um milagre, diziam, e no meu íntimo isso era uma certeza que me marcaria pelo resto dos meus dias.

Depois de sair do hospital as palavras que ouvi de Deus continuavam a arder no meu peito. E pude compreender:

 - "Tu me seduzistes, Javé, e eu deixei-me seduzir (Jr 20,7)."

(Millena Cardoso de Brito)


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