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sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Em tempos de Guerra...

Olhou sem conseguir compreender o que representava aqueles destroços do que antes era sua casa, sua vida. A garota de apenas 5 anos tinha ouvido falar dos rumores de uma tal guerra que assolava sua cidade, mas a ternura dos familiares e o convívio com os amigos, dissipava a preocupação de que algum mal pudesse atingir os lugares e pessoas que ela tanto amava. A menininha, ao ouvir falar da guerra tempos atrás, perguntou para a sua mãe, uma boa senhora que a havia criado desde que ela foi abandonada recém-nascida na porta da casa onde viveu seus primeiros anos:
- Mãe! O que é guerra? Meus amigos falam que os pais deles vão deixar a cidade, pois essa coisa está chegando, é verdade? Estou com tanto medo...
A boa senhora respondeu com o tom mais amável que conseguiu tentando esconder seu olhar de pânico ao ouvi aquela palavra:
- Guerra é uma coisa muito feia, é uma briga que faz muitas pessoas perderem a vida, as guerras afastam as pessoas das coisas e pessoas que amam, e deixam muita gente ferida e triste.
A menina olhou espantada, e agarrou-se a saia da mãe, colocou sua cabeça pequenina no ventre estéril da mulher que se  tornou sua mãe de coração, e começou a chorar. A mãe acariciou os cabelos negros e encaracolados da filha e, novamente, com um grande esforço para não demonstrar nenhuma sombra de medo, começou a falar da fé que nutria sua alma, da esperança que tinha em um Deus de infinita bondade, que tinha enviado o seu filho querido para morrer por nós, da importância de acreditar no imenso amor do nosso Pai do céu e em seu Filho. A mãe também relembrou o dia que colocou a menina pela primeira vez nos braços, após escutar seu choro entre as plantas do jardim da casa. Ela retirou o bebê, enrolado em uma manta branca, dentre as samambaias que faziam parte do seu jardim nos fundos da casa.
Nesse dia , ao ir levar o cachorro da família, o Rex, para passear, o seu marido tinha esquecido a porta dos fundos aberta. A senhora tinha ficado em casa preparando o café da manhã de domingo, e ao ouvir um barulho semelhante a um choro pensou ser o marido que tinha esquecido algo e voltava com o Rex choramingando. Sua surpresa foi grande quando viu tão pequeno pedaço de gente entre as suas plantas, pegou-a no colo, e como mágica sentiu-se envolvida de um sentimento que procurava sentir há anos, enquanto procurava encontrar soluções para vencer sua dificuldade de engravidar. Foi amor ao primeiro toque, o cheirinho da menina invadiu todos os seus sentidos e a fez sentir-se como uma leoa a partir daquele momento, forte e determinada a proteger aquela criança tão pequenina e frágil.
Quando seu marido chegou em casa, tomou um tremendo susto ao perceber que não havia apenas uma mulher em sua casa, mas duas. Os dois conversaram- longamente- sobre os desafios que deveriam enfrentar para adotar aquele bebê de origem desconhecida, mas nenhum deles os fez recuar diante do horizonte de ternuras imensas que vislumbraram ao pensar na possibilidade de terem uma criança para enfim poderem exercer o papel que tanto ansiavam: pais.
Ao ouvir e olhar para sua mãe falando com os olhos que a faziam lembrar os seus doces preferidos, seu coração acalmou-se, podia sentir o calor de cada uma daquelas palavras, que descortinavam um mundo tão bonito e cheio de encantos já pressentidos por sua alma. O que mais chamou a atenção da garota foi sua mãe falar sobre criaturas aladas que tinham a missão de ajudar a Deus na proteção das pessoas e do mundo. As palavras de fé e esperança da mãe de Madalena dissiparam os pensamentos tristes que o significado da guerra havia deixado no ânimo da garota. Maria também falou da origem do nome da menina, Madalena foi batizada com este nome em homenagem a uma das mulheres bíblicas que depois de sofrer pelas suas escolhas erradas e ser marginalizada pela sociedade da época de Jesus, converteu-se ao cristianismo. Madalena prestou atenção a cada uma das explicações sobre a religião de seus pais, ela mesma já havia feito várias perguntas para as suas catequistas sobre a família que diziam que ela tinha no céu. porém, aquela foi a primeira vez que se sentiu à vontade para perguntar tantas coisas que desconhecia. Então, ela percebeu que, em muitos momentos, nem sua mãe sabia ao certo responder suas perguntas, mas a certeza que sua mãe transmitia em cada um dos seus gestos e na forma de falar, não deixava dúvidas no seu coração de que gostaria de conhecer e provar mais do amor de um Deus tão amoroso.A menina calou uma pergunta carregada de esperança pueril, será que Deus pode acabar com a Guerra? E pensou consigo mesma "Vou falar com Ele mais tarde", e sorriu de si para si.
Ao relembrar esses fatos não conseguia compreender o porquê daquelas ruínas. Ela tinha pedido tanto para Deus cuidar da casa que tanto amava! Seu desespero foi maior ao saber que naquele dia, como sua mãe precisava arrumar as coisas para embarcarem para outra cidade, pois os bombardeios estavam se aproximando cada vez mais de onde moravam, ela não tinha ido buscá-la na escola e poderia estar embaixo de algum daqueles destroços. Correu aflita para perto dos restos da casa onde morou seus primeiros anos de vida, e com as mãos pequeninas cavou, cavou, como se com aquela atitude pudesse ter o poder de voltar no tempo, e reconstruir o que havia perdido. Os bombeiros retiram a menina aos prantos daquela atividade inútil, sua tia que a havia trazido da escola não menos abalada, perguntou sobre o acontecido ao chefe das operações de resgate. O homem forte, e com um ar frio falou em um tom sorumbático e com um sotaque de inglês norte-americano carregado, porém compreensível:
- Sinto muito, mas não conseguimos socorrer sua irmã. Quando chegamos o marido de sua irmã havia entrado na casa, e horas depois houve um desabamento, também não tivemos como socorrê-lo.
Nesse momento, tia e sobrinha ficaram a olhar para o vazio, sem reação, após um curto tempo de inércia, caíram uma nos braços da outra. Madalena, mais uma vez, conseguiu iludir a atenção dos presentes, e ao deixar os braços da tia, correu para os fundos da casa em destroços, e viu um corpo estendido no chão coberto por um saco preto, uma cor que naquele momento foi mais clara do que qualquer palavra para definir morte. Sentiu que os bombeiros aproximavam-se, mas não se intimidou, correu para junto do corpo estendido de braços apertos, como o Cristo do crucifixo que sempre trazia sobre o peito, ao lado seu lado o bom e velho Rex trouxe um pouco de conforto, lambendo o seu rosto. Haviam muitos destroços por perto, mas mesmo assim, levantou com suas mãozinhas sujas o pano preto, e vi os olhos petrificados do homem que tanto amou na Terra. Mais uma sensação percorreu todo seu corpinho franzino, pensou que ia desmaiar, mas seu fiel amigo canino, novamente a confortou com uns olhos que pareciam compreender tudo e sentir cada um dos dolorosos golpes que sentia partir seu coração. O cão lambeu mais uma vez as faces, além de molhadas, agora, sujas da garota e  como se dissesse para garota não se preocupar com o pai, pois ele ficaria bem, lambeu o sangue que jorrava da fronte de seu companheiro de passeios matinais. 
Pouco depois, os passos da tia e da equipe de resgate chegaram ao fundo da casa em ruínas, e depararam-se com a cena. Até mesmo o homem de ar frio, sentiu que algo de humano sobrevivia dentro dele, uma sensação de desolação o fez estremecer, apesar de já ter presenciado vários acontecimentos trágicos como aquele. A tia de Madalena aproximou-se e levou a garota, que sem forças para resistir , deixou-se levar para um abrigo destinado aos sobreviventes do ataques daquela tarde. No dia seguinte iriam rumo à cidade mais próxima, onde já havia um grupo refugiados em uma fazenda de propriedade da Igreja Católica Apostólica Romana.


Acompanhe a continuação da história na próxima postagem!

Crédito: imagem retirada do sítio eletrônico Terra, uma foto de AP

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