Aprisionei-me dentro de mim. Fujo do prazer, e
revolvo a dor para desvendar nela vestígios de uma alegria masoquista.
Exponho-me a doer, arrisco a perder a vida entre as paredes da minha velha
casa. Dentro de mim, existe uma vontade enorme de quebrar as correntes que me
prendem, mas quando uso a razão percebo que elas não existem.
Minha mãe nos últimos dias
alertou-me sobre o meu jeito torto de amar as pessoas, e de como eu sou
irritantemente fechada no meu mundo. Sim! Eu criei um mundo apenas meu, e
poucos conseguem penetrá-lo. Desde que tomei consciência de mim, esse mundo vem
sendo construído, sensações, conceitos, desejos, são alguns dos elementos que o
compõem, além de histórias de muitos “eus” misturados a uma essência de mim que
eu mesma desconheço, mas venho
desvelando ao longo dos anos.
Desde criança sou sensível
ao extremo, até a morte de uma formiga me fazia chorar. Minha mãe sempre gostou
de plantas e tinha um belo jardim, recheado de suculentas – eu posso dizer
suculentas, pois eu comia as pétalas eh eh - rosas de várias cores: vermelhas,
rosas, amarelas, e as brancas, que eram as minhas preferidas. Na minha fantasia
infantil, eu comparava onde eu morava com um palácio, em razão de ter aquele
jardim tão florido e perfumado. Era no jardim de minha mãe que eu passava horas
a conversar com as plantas, tocá-las, cheirá-las, e também confabular o que
elas diziam, ou falavam entre elas, quando eu não estava por perto. Ao perceber
que a beleza das flores era tão frágil, pois um dia elas estavam lindas, mas se não
regadas, ou qualquer vento mais forte, ou mesmo o passar de poucos dias, faziam que a formosura delas fenecesse, sentia com isso uma angustia inexplicável. Eu sempre
amei as rosas. E, apesar de, agora
ser uma mulher de 26 anos, continuo a ter a certeza de que sou correspondida
nesse amor.
No jardim da minha infância,
devassei pensamentos escondidos, criei, recriei, construí, reconstruí estórias sobre
a vida, a morte, abismos e pontes. Certo dia, declarei-me para uma flor e pensei
comigo mesma, gravando as seguintes palavras dentro de mim: “A beleza das
flores diz que o amor respira, tem perfume e chora o murchar das pétalas
caídas, secas pelo tempo e que o vento leva...”.
Não apenas de jardim
construí meu mundo paralelo, onde eu sou a dona, mas também de estrelas,
músicas, do carinho do olhar e das palavras cheias de afeto de minha mãe e do
meu pai; das brincadeiras de bola, peteca, bicicleta e outras, com meu irmão,
vizinhos, primos, amigos; tudo isso e muito mais. Sobre todas essas coisas, o
que mais me marcou mesmo foi a amizade que fui aprofundando com Deus, e com os
mistérios espirituais. Eu fui apresentada ao Criador do Céu e da Terra por meus
pais, com a influência preponderante de minha mãe, uma mulher muito católica e
de uma fé inabalável.
Cresci indo à contra gosto no início da minha infância e
adolescência para as missas, mas aquele pãozinho branco que o homem de bata
longa levantava todos os domingos no altar, intrigava-me, e também a enorme cruz que ficava na frente do altar, também roubava, por muitos minutos, durante a celebração católica, a minha atenção. Não poucas
eram as vezes que eu ficava com o olhar parado, pensando sobre aquela imagem cheia
de significados, imaginava quanta dor o homem que a figura representava tinha
sentido, pulsos transpassados por pregos; uma simples picada de agulha de
injeção fazia-me estremecer e contorcer-me de uma dor, não sei se imaginada, ou
real, imagine ser transpassada por pregos!! Era assustador pensar nisso, tão
intensas eram minhas reflexões nesses momentos, que me perdia em pensamentos,
ficava a olhar para o nada, quase em transe, sem conseguir pensar em nada, e
sentia algo estranho, um vazio, um desapego de mim.
Não só de rosas, e boas
recordações construí meu mundo, mas também do abismo das incertezas, de muros,
solidão, medo, e dor... A vida não é fácil para ninguém, e conservo algumas
marcas de minhas batalhas perdidas e vencidas durante a vida que tracei com
passos errantes. Superei muitos traumas, e situações em que fiquei de cara com
a morte. A morte sempre foi um dos meus grandes medos desde a infância. Minha
mãe conta para mim que quase morri na maternidade. Ela estava deitada no quarto do hospital,
depois da cirurgia de cesariana, e eu fiquei ao seu lado, porém ela estava sob
o efeito de anestésico, e não me viu tentando erguer a cabeça do berço
procurando ar. Um amigo de minha mãe chegou para visitar-nos, e deparou-se com meu
desespero na tentativa de levantar sozinha a cabeça. Então, ele gritou e
acordou a minha mãe, e saiu em busca de uma enfermeira. Em seguida, o auxílio
desejado chegou, e eu fui levada para enfermaria, onde desobstruíram minhas
vias nasais que estavam cheias de secreções.
Essa foi a primeira vez que me
deparei com a morte. A segunda, eu mesma fui atrás dela, eu tentei suicídio aos
16 anos. Mas, fui socorrida por meus pais que me internaram às pressas. Acredito
e sinto até hoje que fui salva por Deus. A partir desse acontecimento, procurei
ir ao encontro da pessoa que tanto me intrigava desde a infância, mas que nunca
tinha tido a coragem, nem a sensibilidade de aproximar-me dele. Muitos
intelectuais, cientistas, tem certa dificuldade em acreditar naquilo que não veem,
eu nunca tive esse problema, porém sempre fui uma questionadora e teimosa nata,
e isso foi um dos maiores obstáculos para que eu mergulhasse de vez nos
mistérios infinitos da Criação.
Para mim é muito doloroso
vivenciar o mau que existe dentro de mim e das outras pessoas. Sempre lutei
muito contra tudo que considerava e considero errado: mentiras, injustiças,
desonestidade, desamor, e por aí vai. A visão simplista de seguir à Deus para
ir para o céu nunca me agradou. Sentia que fazer uma coisa boa para ser
recompensava era uma forma de comércio de bens imateriais. A intensidade da
minha alma não se contentaria com essa visão de Deus. Um cara que era Tudo e um pouco
mais, ser infinito, Pai amoroso que deixa seu Filho amado vir para Terra para
ensinar seres tão fragilmente perdidos a encontrar o caminho da salvação, mesmo
sabendo que vai ter que permitir que ele sofra, e seja morto cruelmente, merece
mais do que um coração interesseiro. Acho interesse sim, querer dar algo na
certeza de receber em troca, interesse no mal sentido da expressão mesmo.
Quantos dias e noite eu
senti meu coração arder por uma voz desconhecida, e apenas depois de ter
experimentado o abismo, eu tive forças para ir ao encontro dessa voz tão doce e, ao mesmo tempo, implacável. A voz do Criador. Meu Senhor e meu Deus. Mais de uma
vez, eu pude olhar nos olhos do homem transpassado. Jesus Cristo acolhe-me em
seus braços, e diz muitas palavras que não poderia escrever em uma linguagem inteligível.
Eu fui aprisionada pelo amor de Jesus Cristo, sua mãe, o nosso Pai Criador, e
os consolos do Espírito Santo. É assim que meu mundo aos poucos está sendo
revelado.
Mas, minha fragilidade
humana ainda é uma prisão. O amor infinito que guardo em meu peito não, muitas
vezes, consegue expandir-se, nem tocar as pessoas que precisam dele, o casulo
da minha alma ainda não foi rompido. Eu tenho medo da intensidade desse amor
que plantei em mim, pois conheço a minha natureza imperfeita e a dos
meus semelhantes. Foi essa natureza que crucificou Jesus e continua a
crucificá-lo quando nós nos esquecemos do amor de Deus e optamos pelo caminho
errado...
Espero ter a coragem
suficiente para deixar Deus fazer o que quiser comigo. Para que eu deixe que meu Senhor
Jesus quebre as correntes imaginárias, mas tão reais dos meus pensamentos
doentios, lance fora todos os sentimentos e lembranças que me sufocam. Apenas
assim, poderei enfim voar em liberdade rumo aos céus infinitos do amor divino.
Escrevi uma poesia sobre a
minha sensação de sentir-me deslocada neste mundo
Um mundo contraditório
Sinto que esse mundo não é o
meu.
Não me pertenço.
A carcaça humana prende-me
neste mundo vão,
mas minh’alma sente
necessidade de sair,
Voar a procura do ninho de
origem.
Há um precipício entre eu e
mundo.
Mundo contraditório e fugaz
que deixou em mim vestígios
de sua vil existência.
Sim! Sou humana e frágil.
Não há como negar!
Já que há em mim
a presença de sentimentos
vis e mesquinhos
concebidos no mundo,
produzidos pelas idéias da
nossa parte obscura,
sombra da nossa impureza,
que tenho por estar no
mundo.
Porém, não consigo aceitar
esse meu lado,
mas também não me livro
dele.
Sinto-me perseguida pelo meu
lado obscuro,
algemada
às concepções humanas.
Contudo,
não posso deixar-me levar
pelas
verdades mentidas do mundo.
Por
isso, procuro meu mundo,
um
mundo em que eu seja
Verdadeiramente
feliz,
um Mundo
ao qual eu pertença.
(Millena
Cardoso de Brito)
Crédito: Millena Cardoso de Brito