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domingo, 16 de novembro de 2014

Deixar partir

crédito: imagem retirada da Internet

Nós conversávamos por horas e horas, sem sentir o tempo escorrer dentre as invencionices de nossa amizade. Era um bem precioso ter uma pessoa que com o olhar parecia compreender minha dor ou minha alegria muda. O silêncio entre nós não era nenhum incômodo, ao contrário, ele parecia nos ligar a uma teia invisível de ternura que íamos tecendo ao passo de cada um de nossos encontros. Não consigo definir em palavras a importância da amizade para suportar as adversidades do dia a dia.

A amiga que tinha era bem mais jovem do que eu, mas ela tinha a paciência e uma certa sabedoria infantil para compreender cada um dos meus erros, quaisquer que eles fossem. Diante dela podia despir minha alma,  chorar por amores nunca concretizados, tecer planos de viagens a serem realizadas, falar as coisas mais estúpidas que minha imaginação deixava fluir, rir sem motivo aparente, ou apenas ficarmos nos olhando como se nossos pensamentos se comunicassem sem precisar palavras. Apesar do meu temperamento inconstante, explosivo, cheios de contradições, demonstrações de carinho exageradas, e momentos de aparente desligamento, ela permanecia com o mesmo amor e sorriso consolador todas as vezes que nos encontrávamos.

Eu tinha uma amiga que era uma criança meiga e compreensiva. Ela cresceu. Eu a vi tornar-se uma mulher bonita e determinada. Meu sentimento por ela modificou-se, misturou-se a um outro tão forte quanto o outro e desconhecido para mim até então, além de amiga passei a senti-la como filha.

A partir de tal alteração, a nossa amizade, diferentemente do que eu esperava, em vez de crescer com o passar do tempo, sofreu um desgaste brutal. A minha postura cheia de leves brincadeiras e consentimentos tácitos ao observar os erros da minha companheira de infância, tornou-se mais rígida em relação ao seu modo de encarar a vida pré-adulta. Eu tinha vivido muitas situações dolorosas que fizeram com que eu amadurecesse mais rápido, e ela para mim era uma filha que eu precisava corrigir, o que mais me importava era independente de como minhas broncas fossem vistas por ela, eu ansiava seu bem mais do que agradá-la. Acho que não consegui a medida certa para dosar o amor maternal com o amor de amiga.

Como a maioria dos adolescentes, ela encarou minha mudança de postura como uma ameaça. Brigas constantes passaram a substituir nossas conversas descontraídas e agradáveis, e o silêncio passou a trazer-nos uma inquietação desconhecida. É como se, ao nos calarmos, o silêncio gritasse injúrias, gritasse as coisas que estavam a sufocar a nossa antiga liberdade de falar o que pensássemos uma da outra, o que antes fazíamos sem esforço, nem mágoa. Consequentemente, ao invés, de nós deixarmos fluir e crescer com o tempo o amor que nutríamos uma pela outra, permitimos que um abismo nos separasse.

Não acredito que nenhuma espécie de amor tenha um fim, mas aprendi que devemos deixar que as pessoas que não mais nos fazem bem partir. Elas devem ir, mas sem que guardemos qualquer tipo de raiva ou mágoa. Muitas vezes, as pessoas que foram, podem voltar. Porém, uma vez partida a confiança em um(a) amigo(a), dificilmente, a relação será a mesma de antes. É necessário que o que passou morra para que nasça de maneira renovada a essência de uma amizade verdadeira.

Em certos casos, devemos conservar um museu com todas as pessoas que se afastaram de nós, nos maltrataram, rejeitaram, mas que nós muito amamos e nos decepcionaram, porém, delas devemos conservar, de forma a deixar empalhada na memória, apenas, as circunstâncias boas que passamos com essas pessoas.

Eu empalhei minha amiga no meu coração, dói deixar partir uma grande amizade, perder uma filha, uma irmã, mas ela nunca deixará de ocupar o lugar que ela conquistou na minha vida.

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