Às vezes, eu acordo com a leve sensação de que deixei algo importante para trás, as lembranças travam meu peito e sinto nos lábios mudos o desejo de falar coisas antigas com pessoas que por motivos naturais afastaram-se geograficamente e ou emocionalmente de mim. Recorro então a simples truques humanos de tentar reviver o passado através de fotos, cartas guardadas no fundo de algum lugar reservado a memórias.
Eu, por exemplo, tenho uma caixa onde guardo as cartas antigas de pessoas que marcaram minha vida de alguma forma, a maioria delas, de amigos de minha adolescência. Ao tocar os papéis em desordem já com cheiro de morfo, sinto a segurança de reviver tristezas e alegrias sem a intensidade do instante que eu as senti afloraram dentro do meu ser pela primeira vez.
O tempo parece diminuir a intensidade de dores, mágoas, medos, sensações e sentimentos que no instante em que são reavivados pela memória no presente criam uma barreira confortável, como se ao reviver o nosso passado, fossemos apenas expectadores de nossa própria vida na tela de uma televisão. Além disso, nós pudéssemos ser capazes de reconstruir o que foi vivido, refletir sobre fatos passados, muitas vezes, encontrando respostas para dúvidas e/ou decifrando enigmas que pareciam indissolúveis.
Atualmente, a troca de correspondência por meio de cartas tornou-se uma prática ultrapassada, acalentada por pessoas que gostam ou precisam utilizar esse meio de comunicação que resiste a era de mensagens instantâneas cheias de bits, através da linguagem eletrônica, mensagens por celulares, através de emails e outras ferramentas utilizadas pela rede mundial de computadores que prometem aproximar as pessoas por um click.
Pergunto, então, aos meus queridos leitores. Por que com tantas facilidades para a gente se comunicar com os outros, as pessoas hoje em dia se sentem cada vez mais sozinhas? Não me interpretem de forma equivocada, eu gosto também de usar os meios eletrônicos para facilitar minha comunicação com as pessoas, principalmente amigos e pessoas que são importantes em minha vida, mas sinceramente acho que a mecanização das relações trouxe uma relação mais superficial entre nós.
Quem nunca ao sair com os amigos para um restaurante, pizzaria ou outro lugar bem bacana para uma conversa animada, não viu um ou mais companheiros de mesa a olhar compulsivamente para o celular, com dedos velozes digitando mensagens, outro preocupado com que cara saiu na foto que mais tarde será postada nas redes sociais ou no mesmo instante, aquele que tira foto do próprio prato, ou mesmo o que fica desesperado chamando o garçom, não para pedir algo gostoso para comer, mas para pedir a senha do wifi?
Acho ser necessário certos limites para que vida virtual e real não se confundam, mas também não se contraponham. É bom ter a oportunidade de falar com os amigos pelas redes sociais, quando vivemos num mundo louco que exige de nós uma intensa rotina de trabalho, e muitas responsabilidades como cidadãos ou outros papéis que assumimos numa sociedade onde sobra cada vez menos tempo para lazer.
Para mim, o que provoca o tal sentimento de solidão é que nos acomodamos a praticidade de manter amizades apenas virtuais ou por basearmos relacionamentos em uma convivência de aparências, fugir de assuntos que precisam ser discutidos, conversar de fatos não que acontecem na televisão, mas acontecem dentro de nossas próprias vidas e o mais importante dentro de nós. Ir ao encontro do outro não de uma forma apenas, mas diversas formas, ajudar, compreender, deixar-se amar e ser amado sem mediações. Esses são apenas alguns dos fatores da epidemia da solidão na multidão. As pessoas precisam voltar a estabelecer laços mais firmes e verdadeiros entre seu círculo de amizades, visitas a casa de amigos, telefonemas, passeios, piqueniques, viagens e outras coisas tão divertidas e saudáveis que podem ser programadas nos finais de semana com amigos, familiares, paqueras...
Nada substitui o olho no olho, os abraços, trejeitos, andares, rugas de expressão provocadas pelos gestos incontroláveis durante uma conversa tida de forma pessoal e sem a incômoda barreira de mediações. Uma frase que li em um livro de sociologia marcou-me profundamente, desculpem leitores minha ignorância, mas não sei quem é o autor (quem souber pode até me dá um toque, eu aceito!), só sei que diz: "É impossível ao indivíduo ser alguém ou alguma coisa por muito tempo, exclusivamente por sua conta. Outros têm de nos dizer quem somos, outros tem de confirmar nossa identidade."
A identidade é uma questão controversa em nossos dias, muitas vezes, quando perguntados sobre quem somos, travamos. Claro! O ser humano não é algo definitivo, ele constrói-se por meio de sua vivência com as pessoas e consigo mesmo, por meio de suas escolhas, experiências, Os padrões da sociedade, muitas vezes, engessam a capacidade das pessoas superarem seus limites. Razão pela qual em muitas ocasiões deficientes físicos e mentais são marginalizados ou mesmo aqueles fora dos padrões estéticos, os obesos se sentem tão pressionados pelos padrões da sociedade que muitas vezes sucumbem e se deixam levar por limitações que não são suas, mas da forma como os preconceitos se propagam em nossas mentes. E superar os limites é bom? Depende, escolhas sábias só podem ser conseguidas quando o ser humano deixa de querer por suas próprias forças atingir seus objetivos e tem a sabedoria de se deixar conduzir pela fonte criadora do mundo: Deus.
Agora, muitos leitores irão reclamar, lá vem ela com suas idéias cristãs! Não tenho como fugir disso, se quiserem pôr este rótulo em mim aceito, sou cristã e minhas reflexões certamente sempre serão norteadas pelos princípios da minha crença e do meu caráter construído ao longo da minha vida. Estou aberta a questionamentos, eu não sou tirana em relação a isso, podem ficar calmos meus amigos.
Sou contra certos esteriótipos, distorções da realidade que são difíceis de serem filtrados em um mundo de verdades tão diversas. Eu escolhi a minha verdade: Jesus Cristo. E, como Deus deixa livre os seres humanos para fazerem suas escolhas, cada um escolhe o caminho que lhe agradar. Eu fico com o amor incondicional de Deus, o grande amor da minha vida.
De volta, as minhas velhas cartas, eu sinto falta de ver as letras dos meus antigos amigos e gostaria que os novos me escrevessem algo, mesmo, confesso não escrevendo para ninguém há um longo tempo (só digito mensagens agora). A forma que escrevem traz em cada traço uma emoção diferente, além de carregar as impressões digitais, o cheiro e quem sabe até possíveis lágrimas de quem escreve cartas.
Ao final desta postagem, muitos devem estar se perguntando de tudo o que eu escrevi que relação existe entre isso e o título do post? Vou explicar. É que tenho dificuldade de resumir as coisas, perdoem-me! Entre todas as cartas que recebi que falavam sobre quem eu era, uma delas me encantou, eu descobri-me através das palavras de minha amiga. Foi em 2006, eu e Luciana Lemos estudávamos juntas no último ano do ensino médio e estávamos prestes a prestar vestibular.
Nessa época, eu passava por sérios problemas familiares, a desconfiança de meu pai o meu equilíbrio e sobre a minha capacidade de concentração nos estudos me incomodava bastante, uma vez que, eu sempre tive dificuldades em seguir regras. Eu e a Lulu, como os amigos íntimos chamava-na, éramos garotas que sentávamos nas cadeiras da frente na sala de aula e nos destacávamos, na maioria das matérias, como ótimas alunas.
Somos muito amigas. Uma vez, ela estava doente com problemas respiratórios e o ar-condicionado estava tão frio que eu perguntei ao professor se podia desligá-lo, ele permitiu e eu desliguei. Então, um dos alunos que estudava no fundo da sala e era bem encrenqueiro (que sala não tem um desses!) ligou novamente o tal ar-condicionado, então, eu reclamei e religuei. Ele quis voltar para ligar novamente diante do professor que não sabia o que fazer, eu com o meu audacioso instinto protetor tirei um dos meus velhos tênis all star de um dos pés e ameacei lançá-lo rumo ao encrenqueiro. Foi um alvoroço na sala, óbvio, mas venceu o pulso forte do professor que manteve sua decisão de desligar aquele ar-condicionado, uma vez que tinham outros aparelhos que podiam manter a temperatura da sala agradável em outros locais que não ficavam de frente para a pobre Lulu.
Eu e Luciana convivemos dois anos juntas. Ela é uma garota super inteligente, domina a arte das palavras, aprendeu praticamente sozinha a falar inglês, roqueira, traduzia compulsivamente músicas em inglês de diversas bandas, maioria delas de rock. Por trás das roupas pretas, nosso grupo de amigas descobriu uma pessoa amável, carinhosa, que podíamos contar nos momentos de dificuldade. Atualmente, ela é professora, formada em Licenciatura Letras e Literatura Portuguesa pela Universidade Estadual do Piauí, que concluiu em 2013, com a apresentação de sua monografia que eu tive o prazer de assistir a sua defesa. A monografia era na área de Linguística e foi um trabalho bastante elogiado pela banca de professores universitários que deu nota 10 ao seu trabalho, além de tecerem muitos elogios ao esforço que ela teve para finalizar a sua monografia. Eu fiquei orgulhosa de minha amiga. Além de tudo isso, ela é uma ótima desenhista e cantora e também é aluna do curso de Artes na Universidade Federal do Piauí.
Depois de tantos elogios suspeitos à minha grande amiga, vou logo à inconfidência. Em 2006, recebi uma carta dela no dia do meu aniversário, dentre muitas outras, de amigos da nossa turma, mas essa me marcou pela beleza das palavras, mas também por ter chegado o mais perto possível do que guardava em minha alma e ter conseguido traduzir por meio de palavras o que nem mesmo eu entendia viver dentro de mim.
A carta foi escrita em um papel de caderno um pouco amarrotado e dobrado ao meio, escrito à lápis que dizia na parte da frente: confidencial. Após ler tudo, fiquei uns instantes sem palavras, sem saber como uma pessoa que não era minha mãe, nem tinha crescido comigo, como minhas primas, sabia tantas coisas sobre mim e via com tão belos olhos a minha alma, como aquela minha amiga. Eu sentava ao seu lado na sala, olhei para o lado e vi sua cara encabulada. Não era medo de ser mal interpretada, via que não era isso, pois a amizade era uma certeza que estava alicerçada dentro de nós. Depois de alguns instantes, ela disse a causa de sua tímida atitude diante do que escreveu: " Você escreve tão bem, queria poder escrever tão bem como você." Eu que nunca me vangloriei dos poemas que já escrevia naquela época, achava-os ruins, ainda acho, na verdade, respondi de coração que, naquele momento, ela havia superado a todos os textos que eu já havia lido, pois conseguiu transmitir os sentimentos que sua alma captou sobre outra alma, a minha, que sempre achei ser tão difícil de ser decifrada, pois sempre fui uma garota contraditória, indecisa, fechada e que foge das pessoas com certa frequência.
Peço sinceras desculpas a minha amiga, mas vou cometer a inconfidência de publicar as palavras que ela me escreveu, pois são tão lindas que não serei egoísta de guardá-las somente para mim, eis aqui o motivo do título da postagem:
Beleza Rara
Incrivelmente belo, incrivelmente puro,
incrível beleza d'alma humana já extinta encontrei
Por todos os lugares que passei, de todas as pessoas
que já vi, jamais conheci alguém com beleza tão
rara e percebi o quão maravilhoso é tê-la como amiga. São poucas as palavras que existem no universo para expressar tamanha felicidade
de conhecer a jóia mais preciosa que o ser humano
deixa escapar, mas possuir um dom tão divino,
que até os deuses invejariam, ter que praticar e permanecer
vivo. Não há no mundo tantas pessoas que possuam
esse dom e consigam dominá-lo com perfeição.
Ser tão puro de coração, tão forte de espírito e tão ferido, tão machucado ao mesmo tempo, e ter de
permanecer forte, e isso que faz da alma deste
ser voraz cada vez mais belo. Não desistir, não julgar, suportar a dor da solidão, e viver
é purificar a alma, não ter vergonha de pensar, de falar é realmente possuir beleza rara.
"Millena Cardoso, a menina da alma mais bela que já conheci. Alma ferida, espírito massacrado, imperfeito, mas incrivelmente belo."
(Beleza rara foi escrito por Luciana Lemos de Moura Santiago, em homenagem ao meu aniversário em 2006)
Imagem retirada de: http://shuzy-inercia.blogspot.com.br/2009_11_01_archive.html