Uma cena que meus sentidos captaram desconcertou minha visão sobre a humanidade,como se pela primeira vez eu tomasse consciência da impotência do ser humano diante de certas situações. Na semana passava, eu voltava para casa de carro dirigido por meu pai, depois de uma cansativa noite de estudos no cursinho que faço durante a semana. Como de costume, eu vinha escutando música de uma rádio (a programação naquele horário de final de noite é uma delicia para os ouvidos, apenas clássicas músicas de jazz).
Durante o percurso rotineiro da minha carona preferida de volta para casa, o cansaço do meu pai faz com que ele não seja uma boa companhia para um bate-papo animado, então, habituei-me a silenciar e respeitar a fata de ânimo dele. Contentei-me em conter minha tagarelice e, deixar a música fluir, orquestrar meus pensamentos em silêncio, enquanto olhava pela janela do carona. As luzes da cidade, prédios, o caminhar das pessoas, muitas delas com o medo saltando dos olhos, as árvores à beira do rio Poti resistindo heroicamente ao calor teresinense e à expansão do concreto são alguns dos elementos do meu caminho para casa.
Aquele dia parecia como os outros. A rotina parece imprimir nos nossos sentidos uma automatização, quando vivenciamos fatos repetidas vezes. Isso foi o que eu senti ao abandonar-me aquele momento tão semelhante aos que tinha vivido em outros dias. Enganei-me.
Poucos quilômetros antes de regressar ao meu lar, como já tinha acontecido outra vezes, o carro parou no sinal, pois eu tenho um pai com o hábito de obedecer à sinalização do trânsito. Em razão do adiantado da noite, suponho, havia apenas o carro dele parado no semáforo. À nossa frente, avistamos um rosto de um rapaz. Essa visão fez com que eu acordasse do meu enlevo musical e do conforto da rotina. Ele estava com roupas largas para o seu corpo franzino e sujo, movimentava-se como um sonâmbulo nas sombras da noite, as mãos levantadas pareciam em súplica, cada uma delas havia um objeto: à da esquerda, um pano sujo, aparentemente mal cheiroso e esfarrapado; à da direita, um rolo para limpeza de vidros de carros. Eu já tinha visto aquele rapaz a pedir moedas no sinal e em todas essas ocasiões, quando o via entristecia-me e instintivamente fazia preces ao Meu Deus para que o Senhor fosse ajudá-lo e protegê-lo.
Porém, não sei o por quê, daquela vez senti algo diferente. Os olhos da pobre criatura, para mim uma criança, pareciam não ter consciência de si, visivelmente drogado, caminhava tropegamente, os farrapos que vestia a flamular ao vento, como bandeiras de uma nação arrasada. Surpreendentemente, como não é comum nos meses mais quentes da cidade de Teresina, o céu anunciava que ia chover, em breve, e, por isso, fortes rajadas de vento investiam contra o frágil garoto. Ele aparentava ser mais jovem do que eu, com meus 25 anos, supus que ele não chegasse aos 18 anos. Pensar nisso, fez com que me sentisse tomada de um desejo de proteção maternal, pensei em fazer o costumava quando presenciava situações como aquela e fiz. Orei silenciosamente, mas isso não aplacou a sensação de impotência que esmagou e oprimiu meu coração. Uma dor e um desespero estranho invadiram-me. A oração silenciosa converteu-se em palavras e quebrei meu silêncio, comentando com meu pai como era triste ver um rapaz tão jovem em situação tão degradante.
Ao meu lado, com o sentimento protetor e a experiência de um homem mais vivido do que eu, meu pai olhou, com uma dureza fingida, para o rapaz e negou que ele limpasse os vidros do seu carro, mas por dentro percebi que também sentia piedade pela situação do garoto. Porém, era tarde da noite e uma pessoa naquela situação representava um perigo. Eu compreendi interiormente que a situação merecia cautela, mas a dolorosa sensação de impotência não me abandonou. O sinal demorava a permitir que o meu querido pai nos levasse para a proteção do nosso lar e para longe de tão grotesca cena. Eu pensava comigo:
- O que me fez sentir de forma tão mais intensa essa tristeza que me consumia ao presenciar a miséria de um rapaz desconhecido para mim?
Cheguei a conclusão de que daquela vez tinha tido a oportunidade de olhar nos olhos do pobre rapaz e não consegui desviar o olhar. Com essa atitude pude sentir como é doloroso presenciar tão cruel degradação de um semelhante que podia ser meu irmão, na verdade, para mim ele é meu irmão. Sou cristã e dentre os meus ideias inclui-se o amor ao próximo. Os segundos que o carro ficou parado pareciam prolongar-se mais do que o transpor natural do tempo, então, eu questionei-me:
- O que eu faço para mudar uma situação como essa?
A resposta veio como um tapa na cara - Nada.
As minhas pequenas ambições, vaidades, medos pareceram pequenos diante dessa resposta - Nada.
Eu devia estar com medo do rapaz e rezando para que o sinal abrisse logo, mas o que eu realmente desejei naquela fração de tempo foi abrir a porta do carro, correr em direção ao pobre rapaz, abraçá-lo, pedir desculpas por não saber o que fazer para ajudar, e ter poderes para arrancá-lo da miséria e da apatia. Para a maioria das pessoas seria uma loucura. Além disso, eu não tive coragem de fazer aquilo. Diante da minha impotência e da dor paralisada que foi tomando conta de mim, eu explodi em lágrimas. Meu pai olhou-me enigmático e antes mesmo que ele dissesse algo, o sinal abriu.
O som dos meus gemidos de dor pela cena presenciada misturaram-se ao som alegre do rádio, rompidos por apenas poucas palavras dispersas que meu pai falava e eu, envolvida na dor, não consegui ouvir com exatidão. Em casa, minha mãe abriu o portão da garagem para nos receber, como de costume. Eu sai apressadamente do carro, decomposta pelo duro golpe da realidade vista e sentida, joguei-me nos braços dela, desabei a chorar e contei o que tinha presenciado. Contive o choro e perguntei, olhando para ela:
- O que nós podemos fazer, mãe?!
Ela sem resposta apenas me abraçou, e confortou-me com a doçura do seu olhar. O resto da noite transcorreu com a mesma sensação que senti ao ver a cena. Uma impressão tão forte que está sendo minha companheira durante vários dias, por isso, resolvi escrever.
A cena descrita foi um alerta para mim e eu pude refletir sobre a necessidade de sair da apatia para lutar pela dignidade humano.
Não adianta o homem correr atrás de riquezas e degradar-se. Deixar de lado sentimentos como de honra, compaixão, amizade, amor é viver como as máquinas que o ser humano constrói, e nós existimos não para uma vida superficial, medíocre, sem significado e construída de coisas passageiras, mas para buscar uma vida digna de seres que foram feitos para a Eternidade.
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